Resenha Um Defeito de Cor — quando a literatura é também ritual de memória
- Mih Moraes
- 25 de jul.
- 2 min de leitura
Atualizado: 30 de jul.
Existem livros que entretêm. Outros que ensinam. Um Defeito de Cor faz mais: ele te atravessa.
Foi difícil começar essa resenha, porque as palavras ainda parecem pequenas diante do que essa história provocou em mim. O romance de Ana María Gonçalves é imenso — não só em número de páginas, mas em profundidade, humanidade, beleza e dor. É o tipo de leitura que exige entrega, pausa, respeito. Um verdadeiro ritual de escuta ancestral.
A narrativa é construída como uma longa carta. Kehinde, uma mulher africana já idosa, escreve para seu filho perdido. E nesse gesto de contar, ela reconstrói sua trajetória desde o sequestro na infância, em Daomé, até sua vida no Brasil — como menina escravizada, mulher, mãe, curandeira, libertada. É uma saga de sobrevivência, mas também de resistência e sabedoria.
A cada capítulo, senti que caminhava ao lado de Kehinde. Me emocionei com seus silêncios, suas revoltas, seus amores, seus lutos. Vi nela tantas de nós: mulheres negras que resistem ao apagamento da história oficial, que carregam nos corpos e nas palavras as marcas do que foi herdado, mas também a força de quem insiste em viver com dignidade.
Ana María escreve com delicadeza e precisão. Ela reconstrói a história do Brasil por um viés que raramente ganha voz: o olhar de uma mulher negra africana. E faz isso sem suavizar as violências, mas também sem retirar a poesia da vida. É um equilíbrio raro, potente.
Terminei a leitura com lágrimas nos olhos e o coração cheio. Kehinde agora mora em mim. E Ana María Gonçalves, com sua escrita luminosa, se tornou parte da minha formação como leitora, mulher e brasileira.
Ler Um Defeito de Cor é um ato de amor, de memória e de reparação. Recomendo a quem tiver coragem de se transformar. Porque esse livro muda a gente — e ainda bem que muda.
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